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Foto do escritorMarcello Dantas

NOSSO PRIMEIRO CUME FOI A 190 METROS, NO AGRESTE DA BAHIA


View of the mountain from the window of Abrigo de Montanha de Itatim, a refugee very close to the crag - Foto: Leve de Viagem
Da janela do Abrigo de Montanha de Itatim é possível ver as montanhas para escalar - Foto: Leve de Viagem

Me lembro bem daquele dia. Estávamos em Sítio do Rio Grande, distrito da cidade de São Desidério, na Bahia. Era véspera das eleições presidenciais de 2018 no Brasil. Eu e Ana estávamos na missão de lavar roupas na mão e de longe a gente ouviu a voz de um dos nossos anfitriões:


— Consegui uma carona top pra vocês irem para Lençóis. É de caminhonete, ar condicionado e tudo!!! É pra depois de amanhã, rola demais de ir! E aí?!!

Era o Matheus Sguilaro. Ele e a namorada, Bruna Passos, nos receberam no abrigo para escaladores que eles administram, o Morada dos Tapuias. Ficamos com eles um par de semanas e rendeu uma parceria muito foda que rendeu fotos para o guia do 18º Encontro dos Escaladores do Nordeste (EENe), assunto para outro chope, digo... post!

Voltando a carona... Aí não deu! A gente aceitou porque era perfeito: o Rafael Vendramini, nosso caroneiro, saiu de São Desidério para nos buscar. Ele é gente boa demais, estava indo para uma cidade que passava pelo nosso próximo destino, Lençóis, na Chapada Diamantina, com quatro vagas no carro. É claro que topamos, pois eram mais de 500km de distância entre os dois picos e ia levar um dia inteiro de deslocamento (sendo muito otimista), sem contar o desgaste físico e emocional.

Como o papo começou

No fim das contas até o Matheus que não ia, entrou no bonde do Rafael. Os dois, fortes escaladores, planejaram escalar vias duras em multi pitch em Itatim. Foi aí que a bagaceira começou! Porque o plano deles era Itatim e o nosso, Lençóis, no meio do caminho

Itatim é um pico insano! Fica no agreste da Bahia, com vários inselbergues de granito brotando na paisagem!

Logo no começo da viagem Matheus e Rafael viraram para nós, sentados nos bancos de trás, e falaram com um sorriso de canto de boca:

— São 300km pra decidirem se vão ou não com a gente para Itatim escalar as vias de multi pitch. E a gente já diz que não tem escolha! Vamo com a gente, mosss! Hahahahahaha

Amigos leitores, foram 300km com eu e Ana inventando desculpas para os meninos para não enfrentar nossa primeira parede. “A gente só tem um ATC”, “não temos parada”, “não sabemos dar segurança de cima”, “nunca isso” e “mais aquilo”, “não temos corda”.


(Não tá entendendo nada desse papo? Desce até o final desse post que deixamos um quadrinho de legenda e de algumas dicas)

Então, eles mesmo deram o xeque-mate.

— Vocês vão e pronto! Nós temos tudo isso e vamos emprestar os equipamentos. Ainda vão aprender e praticar tudo antes de subir a parede, lá no chão, ôxe!

Dito e feito! Depois de horas de viagem, deixamos a Chapada Diamantina para trás e tocamos para o Abrigo de Montanha de Itatim, um refúgio para escaladores localizado a poucos metros das montanhas, onde nos hospedamos.

A escalada

Qual foi a primeira coisa que fizemos ao chegar em Itatim? Fomos escalar uma via esportiva para sentir como é a pedra. Porque? Para nos adaptar àquela textura de rocha, reparar nas agarras de mão e, principalmente nas de pé, que fazem toda a diferença nesse estilo de escalada. E claro: tínhamos que nos acostumar com o vento de lá. Todos os dias quando bate 14h01 no relógio começa um vento sinistro!

Foi muito massa sacar aquela pedra! Eu e Ana revezamos a equipagem e a segurança em algumas vias. As proteções eram um pouco distante uma das outras e as agarras de pé, bem pequenas.

A tira colo tínhamos o livro Escale Melhor e com Mais Segurança, do casal Cintia e Flavio Daflon. Fizemos várias consultas sobre como montar uma parada, fazer a segurança do parceiro de cima e outras medidas. Também escalamos com Rafael e Matheus e debatemos sobre algumas graduações. Foi um ótimo primeiro dia para reconhecimento de campo... digo, de rocha!


O morro da toca

A night view of the Monte da Toca, a mountain with a lot of classic routes to climb - Foto: Leve de Viagem
Nada como uma fotografia noturna do Monte da Toca, local onde escalamos nossa primeira multi pitch da vida - Foto: Leve de Viagem

No outro dia, lá fomos nós. Treinamos os procedimentos no abrigo antes de ir para a parede. Eu e Ana miramos ao Morro da Toca, uma montanha belíssima com buracos gigantes talhados perfeitamente na parede.

O mais legal de tudo — e para nossa sorte — é que neste dia o Rafael, Matheus e pelo menos outras três duplas de escaladores também foram escalar o Morro da Toca, mas em faces diferentes. A montanha é imponente, a área é grande!


Croqui of Via Expressa - III 4ºsup E2 190m
Croqui da Via Expressa - III 4ºsup E2 190m

A primeira parede da nossa vida foi numa via chamada Via Expressa, na face leste do Morro da Toca, com graduação de 3º grau com um lance de 4ºSup, e nível E2 de exposição à altura. Tudo isso a 190m de altura, com duração de escalada de menos de um dia, totalizando sete enfiadas. Sabe aquele momento em que você chega na base da via e olha para cima e não vê o topo? Pois é! Foi uma mistura de gelo na barriga, insegurança e vontade de escalar aquela via. Tudo ao mesmo tempo!


E o bom de ter várias duplas espalhadas pela Morro da Toca foi que encontramos um casal super gentil que ia escalar a mesma via que a gente. Era Márcia e Jurandir. Trocamos uma ideia e eles subiram primeiro. Fomos em seguida, eu guiando e Ana limpando as proteções.



Já pensou escalar com seus próprios braços e pernas uma parede de 190m? Para nós, iniciantes de escalada em multi pitch, foi sensacional! Levamos cerca de 3h para chegar até o topo e quando chegamos lá encontramos todas as duplas. Já era noite. Foi insano demais! Depois de admirar a vista durante a noite e fazer algumas fotos, descemos do cume andando.


Márcia e Ana trocam ideia na Via Expressa, em Itatim - Foto: Leve de Viagem

O sorriso na cara de quem escalou a primeira via multi pitch da vida - Foto: Leve de Viagem

A foto do cume com os escaladores que estavam em outras faces do Morro da Toca - Foto: Leve de Viagem

Além de água, subimos com equipamento fotográfico, claro. Uma Nikon D750 e duas objetivas: uma 28mm e outra 70-200mm, ambas f/ 2.8. A vista de cima do agreste é linda demais! Toda a experiência compensou. E tudo rolou a partir daquela carona que poderia dar em nada e resultou na escalada da nossa primeira parede da vida!

Depois da Via Expressa ficamos mais a vontade. No outro dia escalamos com outras duas duplas a via Normal, de 240m, que dá acesso ao cume do Morro do Napoleão, na face oeste. O grau de dificuldade é de 3º com lance de V, e exposição E2. A parede é positiva no último trecho e fizemos essa parte sem a corda estar amarrada a cadeirinha. Foi lindo ver o por do sol de lá caindo atrás do Morro da Toca. Enquanto isso, Matheus e Rafael escalavam a via O Jardineiro, um 6º com lance de VIIa e exposição E3, com 310m, no Morro do Enxadão. Já de noite, do Morro do Napoleão deu para ver só os pontinhos de luz deles escalando a via.

A couple starting to climb the Normal route, that gives access to the top of Napoleão Mountain - Foto: Leve de Viagem
Casal Rafael e Manuelli iniciando a escalada da via de Normal, no Morro do Napoleão - Foto: Leve de Viagem

View of Napoleão Mountain, during a climbing in Via Expressa, in Morro da Toca - Foto: Leve de Viagem
Morro do Napoleão fotografado do Morro da Toca, durante escalada na Via Expressa - Foto: Leve de Viagem

 

DICIONÁRIO E DICAS


  • Vias esportivas, em geral, tem 30m.

  • Multi pitch, em bom português, significa múltiplas paradas. É quando se escala vias longas, com mais de 30m, e os escaladores precisam dividir a escalada em várias enfiadas (ou cordadas) até chegar ao fim da via.

  • ATC é um dos vários equipamentos freio utilizado pelo participante que está fazendo a segurança do escalador. Além de servir como freio, é o equipamento mais comumente utilizado para o rapel após o fim da escalada.

  • Agarras são os lugares na rocha onde você apoia mãos e pés para escalar. Elas podem ser de vários jeitos e formas e tamanhos.

  • Inselbergues são essas formações rochosas que aparecem nas fotos. São geralmente formações monolíticas e que emergem abruptamente do solo formando umas "ilhas de rocha".

  • Use sempre capacete.

  • Respeite a natureza e os escaladores locais.

 

Chapé de frade, a traditional plant in the walls of Itatim - Foto: Leve de Viagem
Estar no agreste é um aprendizado. Plantas como o chapéu de frade espetam, coçam ou ardem - Foto: Leve de Viagem
A big cactus photographed during the full moon in Itatim - Foto: Leve de Viagem
Cactus gigante fotografado durante noite de lua cheia no agreste de Itatim - Foto: Leve de Viagem

Climbers seeing the sunset from the Morro do Napoleão - Foto: Leve de Viagem
Por-do-sol do Morro do Napoleão. Marcelo (2º da esq. para dir.), do Abrigo de Montanha de Itatim, nos guiou nessa via - Foto: Leve de Viagem

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