Me lembro bem daquele dia. Estávamos em Sítio do Rio Grande, distrito da cidade de São Desidério, na Bahia. Era véspera das eleições presidenciais de 2018 no Brasil. Eu e Ana estávamos na missão de lavar roupas na mão e de longe a gente ouviu a voz de um dos nossos anfitriões:
— Consegui uma carona top pra vocês irem para Lençóis. É de caminhonete, ar condicionado e tudo!!! É pra depois de amanhã, rola demais de ir! E aí?!!
Era o Matheus Sguilaro. Ele e a namorada, Bruna Passos, nos receberam no abrigo para escaladores que eles administram, o Morada dos Tapuias. Ficamos com eles um par de semanas e rendeu uma parceria muito foda que rendeu fotos para o guia do 18º Encontro dos Escaladores do Nordeste (EENe), assunto para outro chope, digo... post!
Voltando a carona... Aí não deu! A gente aceitou porque era perfeito: o Rafael Vendramini, nosso caroneiro, saiu de São Desidério para nos buscar. Ele é gente boa demais, estava indo para uma cidade que passava pelo nosso próximo destino, Lençóis, na Chapada Diamantina, com quatro vagas no carro. É claro que topamos, pois eram mais de 500km de distância entre os dois picos e ia levar um dia inteiro de deslocamento (sendo muito otimista), sem contar o desgaste físico e emocional.
Como o papo começou
No fim das contas até o Matheus que não ia, entrou no bonde do Rafael. Os dois, fortes escaladores, planejaram escalar vias duras em multi pitch em Itatim. Foi aí que a bagaceira começou! Porque o plano deles era Itatim e o nosso, Lençóis, no meio do caminho
Itatim é um pico insano! Fica no agreste da Bahia, com vários inselbergues de granito brotando na paisagem!
Logo no começo da viagem Matheus e Rafael viraram para nós, sentados nos bancos de trás, e falaram com um sorriso de canto de boca:
— São 300km pra decidirem se vão ou não com a gente para Itatim escalar as vias de multi pitch. E a gente já diz que não tem escolha! Vamo com a gente, mosss! Hahahahahaha
Amigos leitores, foram 300km com eu e Ana inventando desculpas para os meninos para não enfrentar nossa primeira parede. “A gente só tem um ATC”, “não temos parada”, “não sabemos dar segurança de cima”, “nunca isso” e “mais aquilo”, “não temos corda”.
(Não tá entendendo nada desse papo? Desce até o final desse post que deixamos um quadrinho de legenda e de algumas dicas)
Então, eles mesmo deram o xeque-mate.
— Vocês vão e pronto! Nós temos tudo isso e vamos emprestar os equipamentos. Ainda vão aprender e praticar tudo antes de subir a parede, lá no chão, ôxe!
Dito e feito! Depois de horas de viagem, deixamos a Chapada Diamantina para trás e tocamos para o Abrigo de Montanha de Itatim, um refúgio para escaladores localizado a poucos metros das montanhas, onde nos hospedamos.
A escalada
Qual foi a primeira coisa que fizemos ao chegar em Itatim? Fomos escalar uma via esportiva para sentir como é a pedra. Porque? Para nos adaptar àquela textura de rocha, reparar nas agarras de mão e, principalmente nas de pé, que fazem toda a diferença nesse estilo de escalada. E claro: tínhamos que nos acostumar com o vento de lá. Todos os dias quando bate 14h01 no relógio começa um vento sinistro!
Foi muito massa sacar aquela pedra! Eu e Ana revezamos a equipagem e a segurança em algumas vias. As proteções eram um pouco distante uma das outras e as agarras de pé, bem pequenas.
A tira colo tínhamos o livro Escale Melhor e com Mais Segurança, do casal Cintia e Flavio Daflon. Fizemos várias consultas sobre como montar uma parada, fazer a segurança do parceiro de cima e outras medidas. Também escalamos com Rafael e Matheus e debatemos sobre algumas graduações. Foi um ótimo primeiro dia para reconhecimento de campo... digo, de rocha!
O morro da toca
No outro dia, lá fomos nós. Treinamos os procedimentos no abrigo antes de ir para a parede. Eu e Ana miramos ao Morro da Toca, uma montanha belíssima com buracos gigantes talhados perfeitamente na parede.
O mais legal de tudo — e para nossa sorte — é que neste dia o Rafael, Matheus e pelo menos outras três duplas de escaladores também foram escalar o Morro da Toca, mas em faces diferentes. A montanha é imponente, a área é grande!
A primeira parede da nossa vida foi numa via chamada Via Expressa, na face leste do Morro da Toca, com graduação de 3º grau com um lance de 4ºSup, e nível E2 de exposição à altura. Tudo isso a 190m de altura, com duração de escalada de menos de um dia, totalizando sete enfiadas. Sabe aquele momento em que você chega na base da via e olha para cima e não vê o topo? Pois é! Foi uma mistura de gelo na barriga, insegurança e vontade de escalar aquela via. Tudo ao mesmo tempo!
E o bom de ter várias duplas espalhadas pela Morro da Toca foi que encontramos um casal super gentil que ia escalar a mesma via que a gente. Era Márcia e Jurandir. Trocamos uma ideia e eles subiram primeiro. Fomos em seguida, eu guiando e Ana limpando as proteções.
Já pensou escalar com seus próprios braços e pernas uma parede de 190m? Para nós, iniciantes de escalada em multi pitch, foi sensacional! Levamos cerca de 3h para chegar até o topo e quando chegamos lá encontramos todas as duplas. Já era noite. Foi insano demais! Depois de admirar a vista durante a noite e fazer algumas fotos, descemos do cume andando.
Além de água, subimos com equipamento fotográfico, claro. Uma Nikon D750 e duas objetivas: uma 28mm e outra 70-200mm, ambas f/ 2.8. A vista de cima do agreste é linda demais! Toda a experiência compensou. E tudo rolou a partir daquela carona que poderia dar em nada e resultou na escalada da nossa primeira parede da vida!
Depois da Via Expressa ficamos mais a vontade. No outro dia escalamos com outras duas duplas a via Normal, de 240m, que dá acesso ao cume do Morro do Napoleão, na face oeste. O grau de dificuldade é de 3º com lance de V, e exposição E2. A parede é positiva no último trecho e fizemos essa parte sem a corda estar amarrada a cadeirinha. Foi lindo ver o por do sol de lá caindo atrás do Morro da Toca. Enquanto isso, Matheus e Rafael escalavam a via O Jardineiro, um 6º com lance de VIIa e exposição E3, com 310m, no Morro do Enxadão. Já de noite, do Morro do Napoleão deu para ver só os pontinhos de luz deles escalando a via.
DICIONÁRIO E DICAS
Vias esportivas, em geral, tem 30m.
Multi pitch, em bom português, significa múltiplas paradas. É quando se escala vias longas, com mais de 30m, e os escaladores precisam dividir a escalada em várias enfiadas (ou cordadas) até chegar ao fim da via.
ATC é um dos vários equipamentos freio utilizado pelo participante que está fazendo a segurança do escalador. Além de servir como freio, é o equipamento mais comumente utilizado para o rapel após o fim da escalada.
Agarras são os lugares na rocha onde você apoia mãos e pés para escalar. Elas podem ser de vários jeitos e formas e tamanhos.
Inselbergues são essas formações rochosas que aparecem nas fotos. São geralmente formações monolíticas e que emergem abruptamente do solo formando umas "ilhas de rocha".
Use sempre capacete.
Respeite a natureza e os escaladores locais.
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